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Mulherisciência

   Neta de poeta prático e filha de romancista, cresci observando o jogo de palavras ser uma das brincadeiras mais praticadas pelos adultos ao meu redor. Sim: adulto brinca! Digo mais, adulto precisa brincar, porque é da ausência do lúdico que nasce o desgosto pelo viver (no infinitivo mesmo). Por isso, desde cedo, aprendi a ter o gosto por misturar palavras e transformar seu significado. Ou então, poderia atribuir um tom diferente para o sentido anterior. Isso me diverte!

    Costumo acordar antes das seis, geralmente com alguma ideia na cabeça que provavelmente será roubada pela sobrecarga do dia. Ou ainda, a inspiração pode ser dissolvida através da execução das multitarefas que tenho enquanto mãe solo, chefe de família, dona de casa e profissional. Mas hoje é domingo.

    Depois de ler mais um trecho do livro organizado por Manuela D’Ávila - Sempre foi sobre nós: relatos da violência política no Brasil, (encontre o livro aqui: bit.ly/3u3Gaa8) - em que Talíria Petrone narra a última conversa que teve com sua amiga Mariele Franco às vésperas de ser morta; adormeci na noite de sábado.

    Aos domingos, me reservo o direito de desacelerar o ritmo, diminuir as autocobranças, de planejamento e produtividade. No domingo é permitido caminhar devagar, comer lentamente e até pensar no que se quer, a qualquer tempo. E assim, surpreendentemente, sobra espaço para a criatividade aflorar. 

    Domingo é dia de cozinhar antes da fome apertar, ouvindo música com minha filha, e aproveitar que o dia parece ter mais horas que segunda para colocar o papo em dia. É no domingo que a gente caça novos músicos, novas canções e ouve aquelas que estão gravadas na memória acompanhando os momentos da vida. Registrar o viver em marcos é preciso, e a música cumpre bem esse papel.

    Hoje descobrimos “Mesmo antes de Morrer + Crime Injustiça”  enquanto fazíamos busca pelo nome de Daíra (conheça essa cantora fantástica aqui: bit.ly/3nuYuqb). No clipe, a música  interpretada por Daíra e Andréa Bak termina assim: “ (…) e só pra lembrar que a justiça, ela não é cega, é daltônica. Mariele presente”.

    Se aqui e agora eu disser a palavra ciência, o que aparece nas suas representações mentais sobre esse conceito? Para cada nome que damos às coisas, existe um mundo de símbolos e significados, que são individuais, mas foram formulados através da cultura e relações sociais.

    Quando eu digo cientista, no que você pensa? Numa figura parecida com o Einstein? (O Einstein: bit.ly/3xvUlXt) Homem branco, descabelado, com olhar distante e compenetrado? Deixemos de lado as associações entre ciência e loucura para nos ater ao objeto dessas despretensiosas linhas: o apagamento da mulher da História da Ciência e de sua exclusão do imaginário social quando se remete ao termo ciência. O apagamento da mulher.

    Enquanto, antes do almoço, colaborava na edição de um vídeo para uma apresentação de tese, fui me deparando com uma produção científica riquíssima e feita pelas mãos zelosas de uma mulher incrível. Cientista de primeira linha, ela está para concluir seu doutorado pela Unesp e dedica sua vida acadêmica integralmente aos animais silvestres desde o início de sua graduação em Veterinária pela UFV.

    Olhando para suas fotos tiradas no trabalho de campo, brotou como um outdoor intrapsíquico a palavra Mulherisciência. Não posso dizer que esse fenômeno ocorreu na minha cabeça porque pra mim era real, concreto. A imagem que formou as letras que  compõem essa palavra era palpável. Eu quase podia tocar cada letra:

M U L H E R I S C I Ê N C I A.


Da catarse


    De repente na cabeça ressoa a frase da música ouvida há pouco: “A coisa é pouca, o povo à toa, nasce a moda, o pop enjoa, a vida cansa, o som descansa, o povo pega a manobra, a massa vira mão de obra. O feitiço mata a cobra, siriema do Estado, faz que bate, representa. Nega o peito, mama a fama, vê o sol nascer dopado na lida sem cor. Morre a preta e o amor” (ouça a música aqui: bit.ly/3gMhRta

    Os repiques deste samba, acompanharam as palavras de Talíria lidas ontem: “Eu nunca mais vi Mariele. Nem no velório. Os tiros que a mataram acertaram seu rosto e o caixão não pôde ser aberto. O amanhã não chegou para Mari. O amanhã não chegou para nosso encontro. Quantas lutadoras tiveram, têm ou terão seu amanhã interrompido pela brutal violência política que assola nosso país? (p196)” … não a conheço, por isso não sei como ela falaria essas frases que escreveu. Em que tom? Em qual volume?

    O som da voz dublada de Marie Currie ressurge, como se não tivesse mais de duas semanas que assisti ao Radioactive (assista ao filme aqui: bit.ly/3t3eVee). A cientista recebe um telegrama da Academia Real das Ciências da Suécia que informa que ela é vencedora, pela segunda vez, do prêmio Nobel. Ela estava sendo premiada em Química, por extrair os elementos rádio e polônio. No telegrama, sugerem que ela “NÃO VÁ À CERIMÔNIA PARA EVITAR CONTROVÉRSIAS DESNECESSÁRIAS” (Radioactive, 1:21:00) 

    Volto minha atenção à música de fundo do vídeo de apresentação da tese de doutoramento da cientista Clarice Silva Cesário. Na tela está um slide com a letra de Formigueiro, interpretada por Ivan Lins: 


“(...) Repinique e xique-xique, tanta coisa com repique

Pra entupir nossos ouvidos, pra cobrir nossos gemidos

Quando acabar o batuque aparece outro truque

Aparece outro milagre do jeito que a gente sabe


Avisa ao formigueiro

Vem aí tamanduá (...)”


O título da pesquisa: “Aspectos parasitológicos e sanitários de tamanduás-bandeira de vida livre.”


    Os tamanduás são animais silvestres e estão em extinção...VIDA LIVRE... Sobrecarga mental e física feminina, ROTINA, acordar antes das seis, ter o privilégio (?) de fazer o que se queira com o domingo - pelo menos nele. CRIATIVIDADE que se esvai junto com a energia vitalem dias que parecem durar semanas, o almoço, a casa, a limpeza da casa, o cuidado com os filhos… e a CIÊNCIA?


Da organização


   Há mulheres enfrentando tudo isso, cursando os trilhos de suas vidas sobrepostos aos descaminhos da desigualdade social, preconceitos, rótulos e violências que nos são impostas. Há mulheres que, apesar disso, costuram, trabalham em casas de família, cuidam dos seus filhos, dos filhos de outras mulheres. Que estão desempregadas, são chefes de família, são educadoras, sindicalistas, cientistas. HÁ MULHERES.

    E porque nós existimos e resistimos, precisamos falar sobre nós. Para que a gente se ouça, para que sejamos ouvidas e reconhecidas. Para que não sejamos apagadas nem das memórias daqueles que fazem as leis que regem nossos direitos (ou ausência deles); nem da História que escrevemos com nossos próprios punhos e ações revolucionárias; nem da Ciência que foi e é desenvolvida por tantas mulheres que foram silenciadas nas páginas dos livros didáticos.


MULHER, tome ciência de si, seja você cientista ou não. Tome CONSCIÊNCIA de que você é protagonista de sua história e assim vai tecendo a História de nosso país. Vamos juntas?


Da próxima vez que eu aparecer por aqui, prometo trazer uma entrevista com a Doutora Clarice Silva Cesário*, quando nós teremos a oportunidade de ouvir como foram seus caminhos na Ciência e na vida, enquanto mulher.


*Clarice é natural de Cataguases e é servidora pública no Instituto Federal de Bambuí. Graduada e mestre pela UFV e doutora pela Unesp.


Por Ludmila Cesário

Coletivo de mulheres feministas de esquerda que busca atuar de forma a ampliar a representatividade política feminina no município de Cataguases, MG.

Comentários

  1. Texto lindo e uma homenagem a todas as mulheres que se dedicam às ciências no Brasil e no mundo!!!
    Parabéns Clarice Cesário

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  2. MULHERISCIÊNCIA é como um grito duplo de resistência em nosso país de hoje, não é? De um lado, o feminicídio no Brasil quebrando recordes mundiais, de outro, o negacionismo com relação à ciência e, no meio disso, as mulheres, os cientistas e as mulheres cientistas.
    No fim, Lud, tomar ciência de si em relação ao seu contexto, apesar de categoricamente doloroso, é um exercício necessário nessa jornada. :/
    Dito isto, adorei o texto e as variadas referências! <3

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  3. Parabéns, Clarice! Você é inspiração. Lindo texto Ludmila.

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  4. Término de ler esse texto com lágrimas nos olhos, levada pelo ritmo poético do texto, da resistência contida nas linhas e entrelinhas... Levada pelo orgulho de ver uma de nós alçando vôos altos e nos representando na Ciência!
    Lud, sua inspiração comoveu, contagiou, tocou profundamente e, certamente, a quem leu ou lerá seu texto! 🥰

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  5. Obrigada pelo carinho companheiras! Ao lado de vocês, a luta fica menos árdua!

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  6. Esse texto me deixou sem fôlego. É um soco no estômago, um desabafo que me representou. Fiquei muito lisonjeada por ter sido parte da história, muitíssimo bem estruturada e redigida pela Ludmila. Lélias, vcs são inspiradoras.

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  7. Belíssimo o texto, parabéns Ludmila e a Clarice também, vocês duas sempre me surpreenderam.

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  8. Quanto de mim vejo nesse texto... palavras que me inspiram, me impulsionam... me fazem refletir um pouco sobre minha trajetória e muito sobre minha rotina. Obrigada Ludmila por compartilhar seu domingo!

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